por Well Mag

Violência contra a mulher: um longo caminho até a sobrevivência

Dia 10 de Outubro celebramos o Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, data formalizada após o fatídico protesto de mulheres no Teatro Municipal (São Paulo), em 10 de Outubro de 1980, contra o aumento do crimes de gênero – isto é, aqueles praticados contra uma pessoa em razão do seu gênero. Em outras palavras, quando uma mulher sofre uma violência meramente por ser mulher. Existe-se, assim, com o marcador do gênero tal qual um alvo: vivemos em uma sociedade onde ser mulher é a busca constante pela sobrevivência.

Desde os primeiros momentos de vida, o marcador do gênero nos impõe um peso enorme. Somos destinadas a brincar com determinados brinquedos, a usar uma cor específica, a buscar a feminilidade ao invés da carreira profissional, a sermos delicadas e quietas, sem provocar alardes – principalmente quando uma violência é cometida dentro de casa. Nossa sexualidade é podada: a nós, mulheres, cabe o recatamento. Devemos buscar a satisfação, mas do outro, a do marido, exclusivamente entre quatro paredes. O exercício livre da sexualidade é um direito permanente aos homens, que cultuam a masculinidade como o rito dos guerreiros: a eles a agressividade, a nós a submissão e serventia.

Todos esses fatores e padrões de gênero cumprem um papel importante na invisibilização da violência contra a mulher, especialmente no que chamamos, dentro do Direito, de taxas de subnotificação. As taxas de subnotificação declaram uma realidade muitas vezes ignorada pelos juristas e políticos: nem mesmo as pesquisas conferem um cenário vívido da realidade da violência de gênero, uma vez que muitos casos não são registrados. Assim, mesmo que taxas alarmantes sejam identificadas pelos núcleos de pesquisa empírica, ainda devemos considerar a somatória da subnotificação – totalizando, sempre, um número maior daquele apontado.

A subnotificação é um cenário que contribui para que vítimas sejam desestimuladas a denunciar uma situação de violência sofrida: seja na decisão de ir até uma delegacia, ou mediante a revitimização sofrida dentro dos órgãos policiais e processuais. Por revitimização entende-se o processo no qual a vítima de violência é submetida a vitimizações secundárias ou terciárias dentro dos setores sociais e jurídicos: seja na falta de acolhimento ou no descrédito, até mesmo através das cerimônias degradantes na qual é submetida (por exemplo, sendo obrigada a reviver suas memórias inúmeras vezes a relatando para diversos profissionais de forma repetida e desnecessária). A mulher pode até registrar um boletim de ocorrência, mas tem sua violência revivida tantas vezes dentro dos setores legais que prefere, mais uma vez, se esconder na própria dor.

Conforme últimos dados oferecidos pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), a taxa de subnotificação se manifesta em todas as modalidades de violência contra a mulher. Ao longo da última década – 2012 a 2021 –, 583.156 pessoas foram vítimas de estupro e estupro de vulnerável no Brasil, segundo os registros policiais. Apenas no último ano, 66.020 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável foram registrados no Brasil, taxa de 30,9 por 100 mil e crescimento de 4,2% em relação ao ano anterior. Estes dados correspondem ao total de vítimas que denunciaram o caso em uma delegacia de polícia e, portanto, a subnotificação é significativa (FBSP, 2022). Quando vítima é negra ou indígena, a taxa de subnotificação é ainda mais evidente – uma vez que a mesma enfrenta obstáculos ainda maiores para registrar a violência sofrida (sendo que, muitas vezes, sequer possuem ciência de que se trata de uma violência).

Os estudos realizados pelo Fórum de Segurança Pública (2021) nas mais diversas modalidades de violência contra a mulher indicam, em sua maioria, um declínio nas taxas durante o advento da COVID-19. Isso porque, em razão do isolamento durante o período da pandemia, as vítimas encontrariam maior dificuldade para notificar casos de violência, uma vez que a maior parte dos agressores – sendo conhecidos, parentes ou até mesmo parceiros afetivos das vítimas – estariam exercendo um poder maior de vigilância e de domínio. Levando-se em consideração que os perpetradores muitas vezes estão inseridos no ambiente privado e doméstico das vítimas, a coação moral, física e emocional poderia coibir denúncias, acarretando menor número de registros sem correspondente redução na ocorrência dos atos de violência (FBSP, 2021).

Escolheu-se nesse artigo abordar a importância do estudo acerca da subnotificação de crimes contra a mulher, fenômeno ainda muito presente na sociedade brasileira. Muito se fala sobre a criação de tipos legais, ou até mesmo clama-se por campanhas de cultuação às armas (que apenas perpetuam um ambiente mais propício para a violência doméstica e ocorrência de feminicídios), mas pouco se aborda que movimentações punitivistas nada adiantam se sequer estamos próximos de um cenário onde os dados de violência contra a mulher refletem a realidade.

Precisamos, antes de tudo, incentivar a preparação técnica dos agentes de serviço – sejam policiais, assistentes sociais, promotores ou juízes – que cumprem a função de registrar, julgar casos e auxiliar mulheres vítimas de violência doméstica. É necessário um debate permanente acerca dos direitos de gênero, com a criação de ambientes acolhedores e propícios onde as vítimas de violência possam ser ouvidas de forma humanizada, dando-lhes a escolha da busca pela justiça sem revitimizações no curso do processo. É necessário, por fim, pensar na vítima em primeiro lugar. Nesse dia 10 de outubro, pense nas mulheres mais próximas de você: reflita se você pode ser uma pessoa mais presente na vida de uma vítima em potencial, e como é possível sempre ser um aliado na luta pelos direitos das mulheres.

 

SOBRE: Laleska Walder é Doutoranda em Direito Constitucional, Mestre em Direitos Humanos e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro Efetivo da Comissão Especial de Bioética e Biodireito e da Comissão Permanente de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP). Advogada criminalista, com ênfase em direitos humanos e de gênero (OAB/SP 449322-1). Pesquisadora acadêmica, professora e palestrante. Para contato, o e-mail: laleskawalder@gmail.com

 

 

FONTES:

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário Brasileiro de

Segurança Pública – 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf />.

 

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário Brasileiro de

Segurança Pública – 2022. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5/>.

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